segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

SIDARTA DO FIM DE ANO

PINTURA E POEMA DE CADU LACERDA


Esperança é a primeira que morre
Na transformação poética da cor
Relega ao próximo vidente
A dor de renascer
Sol, lua, estrela
A Terra, o vento e o ar
É a luz do firmamento
Só a quem eu devo amar

TRÊS CONTOS DE SONIA COUTINHO

Um dia notável
Depois de quase uma semana reclusa, no feriado ela decide sair, afinal, para ir ao supermercado. Mesmo porque isto já se tornou inevitável, não tem mais nada em casa para comer.
Todo esse tempo preferiu evitar a rua com medo de tiroteios entre policiais e traficantes em fuga das favelas próximas, ocupadas.
Como não tem estoque de comida, ficou até sem leite nem pão.
Não há como preparar sequer o café da manhã.
E, sem café, ela não funciona.
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Pouco depois, passando com seu velho carro pela Borges de Medeiros, vê que há pouquíssima gente caminhando ou correndo pela calçada próxima da lagoa.
Inteiramente incomum, para um feriado.
O medo de balas perdidas deixou as ruas quase desertas.
Não foi disparado um só tiro, mas muita gente ainda acha que pode acontecer.
Claro que também está chuviscando, mas só um pingo ou outro, muito de leve. Normalmente, isto não assustaria os caminhantes.
Ela também sentiu muito medo. Mas agora já está calma, então segue na direção do Leblon.
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Estaciona, como de costume, no segundo piso do supermercado e, sempre evitando elevadores, desce por uma rampa até o térreo, vai diretamente para o café.
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Compra a comida em pequenas quantidades, porque assim ela própria pode carregar, não precisa de entregador.
E também porque adora o supermercado e, com isso, tem motivo para vir aqui quase todos os dias.
Passou a conhecer muitos dos funcionários, isto ameniza a solidão, traz uma sensação de pertencer.
Lembra que, já faz algum tempo, nenhum dos seus amigos aparece em seu apartamento.
Está sentindo falta.
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Quantos anos faz que não tem marido? Até perdeu a conta. Filho, nunca teve, e os parentes que lhe restam moram em outro estado.
Sei que sou esquisita, pensa, levando a bandeja com o café e dois pães de queijo até uma mesa. Mas, pelo menos, como todas as mulheres, adoro ir a shoppings e supermercados.
Eles lhe garantem uma certa alegria.
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Este supermercado mudou de dono e passou algum tempo fechado para reformas.
Agora reabriu, e ela está gostando do seu novo novo aspecto.
Principalmente porque não se desfizeram do piano que fica no café. Espera que o mesmo velho ainda venha, às vezes, tocar nele antigas melodias americanas.
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Faz suas compras de alimentos com a segurança de uma Sobrevivente. Depois, pega para levar uma revista de que gosta muito.
Pensa, com satisfação, que depois do almço ficará deitada em sua cama, recostada numa almofada, folheando a revista.
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Logo ao chegar ao seu apartamento, vai ao computador ver se há e-mails para ela – nenhum.
Meio triste, dispõe-se a telefonar para alguém, mas neste momento ouve os estampidos: PAM. PAM. PAM. PAM.
Meu Deus, será que estão acontecendo tiroteios, afinal? Corre para a varandinha e então vem o alívio. Ainda há estrelinhas subindo, foram fogos de artifício que alguém soltou, em comemoração ao Quinze de Novembro, à proclamação da República.
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Pouco depois, cumpre seu projeto e se deita em sua cama, ainda com a roupa da rua.
Recosta-se numa almofada e fica folheando a revista nova.
É quando alguém toca a campainha da porta.
Meu Deus, e o porteiro não avisou a chegada de ninguém!
Deve ser ele! Nem espia pelo olho-mágico para ver quem é, tem certeza de que é o Brad Pitt.
E então, a surpresa:
- Robert! Robert Pattinson! É você!
É a primeira vez que ele vem; mas, mal ela abre a porta, Robert vai entrando, sem cerimônia.
Afrouxa o nó, tira a gravata, depois o paletó, os sapatos e as meias, vai pondo tudo em cima e ao lado de uma poltrona.
Fica apenas com a camisa social aberta ao peito e as calças jeans.
- Vamos para a cama – diz.
E, vendo seu ar inseguro – é a primeira vez com ele – declara:
- Não se preocupe, Sei do que você gosta, querida. Os outros já me explicaram tudo. Ficaremos apenas um ao lado do outro, nos abraçando e acariciando como se fôssemos irmãos. Você não quer?
Mas claro que sim, ela quer.
O que ele disse corresponde inteiramente à verdade. É isso mesmo que ela costuma fazer com todos eles, quando aparecem.
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Antes de dormir, ela pensa: hoje, 15 de novembro de 2011. Um dia notável. Porque é ...exatamente hoje. Porque é... exatamente agora.

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O que lhe resta da vida


Quase todo dia ela sai do Catete e vai a um shopping elegante, na Zona Sul do Rio. Tem mais de 60 anos, não precisa pagar o ônibus. É um grande prazer para ela ir a esse shopping - e tudo fica quase de graça. Vive em busca de coisas assim, em seu esforço para “aproveitar o que lhe resta da vida”, mesmo com o pouquíssimo dinheiro da sua aposentadoria.
Desce do ônibus exatamente às dez na frente do shopping. É a hora em que ele abre. Uma pontualidade que lhe vem da repetição diária do percurso. Vê que há uma porção de gente já à espera para entrar. O Natal está próximo e o o shopping anda muito cheio.
Entra junto com as pessoas aglomeradas, quase se acotovelando com elas, e começa a caminhar pelos corredores do térreo.
Este andar tem mais restaurantes do que lojas. Mas aqui fica a banca sofisticada onde ela sempre compra o jornal e aproveita para dar uma olhada nas revistas. E aqui fica também a lanchonete onde todo dia ela toma um café pingado e come um pãozinho de queijo. A balconista coloca a xícara na bandeja com um biscoitinho no pires e mais um pequeno copo plástico com água gasosa. Ela mesma carrega a bandeja para uma das mesas.
Bebericar o café, dando pequenas mordidas no pão, traz-lhe uma sensação de imenso relaxamento. Quando acaba, sobe a escada rolante para o segundo andar. Aqui, sim, há várias vitrinas interessantes.
Entra numa loja de produtos femininos orientais. Gosta da bijuteria exótica, que espia longamente. Quando a moça lhe pergunta se pode ajudar, ela responde que “se precisar de alguma coisa te chamo, querida”.
Continua a caminhar, mas já se sente um pouco cansada. Não é mais tão fácil para ela como antes percorrer os três andares do shopping. Segue um pouco mais devagar e logo vai sentar-se num sofá próximo.
São muito convenientes esses conjuntos de sofás e poltronas de couro falso, mas bonito, colocados, em todos os andares, no corredor mais largo onde ficam as escadas rolantes. Permanece sentada quase meia hora num sofá preto, sabe que ninguém a tirará daí.
Não tem o menor medo de que os seguranças vestidos com bons ternos escuros a incomodem. Fica olhando um deles. São uns sujeitos grandes e mal-encarados, sempre de prontidão nos cantos mais discretos.
Não tem motivo para temer. Não é uma compradora e sim uma penetra, que vem mais para espiar roupas, objetos, pessoas. Mas às vezes até que leva as coisinhas baratas que vai descobrindo.
E vem sempre vestida inteiramente de acordo, cuida muito disso. Seu dinheiro é mínimo, mas considera esta uma despesa indispensável, mesmo que sacrifique a comida.
Não faz mal repetir roupas, mas precisam ser de boa qualidade, neutras e informais. Assim se vestem as mulheres que moram ali perto e quer ser confundida com elas.
Esse aspecto minuciosamente correto lhe garante a aceitação. Passa despercebida. Poderia ficar aí sentada horas, folheando seu jornal. Mas prefere continuar a caminhar, e pouco depois se levanta. É quando vem a boa surpresa do dia.
Numa bancada de venda de produtos para surfistas, vê, entre camisetas e relógios, pequenos chaveiros diferentes e engraçados. Adora chaveiros, tem uma porção deles enfiados numa grande argola de plástico azul, que carrega sempre na bolsa. Aproxima-se e fica manuseando os chaveiros, sob o olhar amável da vendedora sorridente.
Seu coração dá um salto, quando ela encontra um chaveiro que é uma pequena sandália havaiana azul, esmaltada em cima, com borboletas amarelas.
- Quanto é este? – pergunta à moça.
E ouve a maravilhosa resposta:
- Dez reais.
Meu Deus, dez reais, que bom, é barato, ela pode levar.
Puxa sua carteira da bolsa, tira de dentro os dez reais, paga, diz que não é preciso embrulhar o chaveiro e volta para o sofá com ele. Quer transferir imediatamente para o chaveiro novo as chaves do seu apartamento, que estão em outro, já velho, meio enferrujado.
Voltará para o Catete com mais um dos seus pequenos objetos dispensáveis, às vezes sem nenhuma utilidade, mas que gosta tanto de comprar. Maravilha!
Claro que está velha. Claro que é pobre. E claro que passará mais um Natal e fim de ano sozinha: seu marido morreu, nunca teve filhos, seus pais também morreram e o que resta da sua família mora em outra cidade, muito longe.
Mas, neste momento, ela esquece de tudo isso. Ganhou seu dia. Já pode ir para casa. Decide não comer um sanduíche, como almoço, no shopping mesmo.
Preparará alguma coisa para almoçar quando chegar em casa, assim o dia sairá mais em conta.
Fica mais algum tempo no sofá, depois se levanta, adiante joga o chaveiro velho num recipiente para lixo, e segue para a escada rolante, a saída do shopping, chega ao ponto do ônibus.
Sabe que, com seu novo pequeno objeto para olhar e apalpar, com seu brinquedinho, não haverá nenhum problema pelo resto do dia.
Durante a tarde inteira, enquanto não começam as novelas que a anestesiam até a hora de dormir, evitará aquela angústia desesperada, não pensará outra vez em se atirar pela janela e não precisará de nenhuma dose extra do seu remédio forte.

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Presente, ausente


Acordou, saiu rapidamente da cama.
Foi até a cozinha, pegou o interfone, ligou para a portaria do prédio. A resposta do porteiro veio rápida: não, ninguém deixara pacote algum para ela.
Desligou com um nó na garganta, os olhos cheios de lágrimas. Caminhou vagarosamente, encurvada, para sua cadeira de balanço.
Mas que idiota tinha sido. Claro que já deveria saber. Era tarde demais, estava com 79 anos.
Sim, tardíssimo! Como chegara a imaginar que ainda seria possível? Tinha de encarar a realidade. Não havia como fugir disso.
Ninguém lhe daria outra vez, nunca mais, um ursinho de pelúcia de presente de Natal.

ESTES TRÊS CONTOS SÃO INÉDITOS

TODA A VERDADE SOBRE A TIA DE LÚCIA

Uma resenha de Rubem Mauro Machado

A arte de Sonia Coutinho

O universo dos contos de Sonia Coutinho é concentrado e fechado, com freqüência opressivo, girando sempre, como já salientei em outra ocasião, em torno de uma personagem única, bem determinada (em mais de um sentido do termo): a mulher de classe-média, já experiente e vivida, dedicada ao trabalho intelectual e/ou artístico, que veio buscar na vida da cidade grande – no Rio de Janeiro – a independência, o livre mover-se, o escape da armadilha da mediocridade provinciana. E que por seu orgulho paga o alto preço da solidão. Esta é lamentada; mas é de se duvidar que esse alter ego tenha qualquer dúvida sobre a decisão, dura mas inevitável, que determinou o seu modo de estar no mundo.
O que poderia ser uma leitura penosa, no entanto, se converte em prazer, pelo talento da escritora, que nos leva a deslizar com a suavidade de um barco pelo seu texto ágil, de frases econômicas e certeiras, temperado em alguns momentos por uma pitada de humor ou ironia.
Qualidades essas todas presentes nos 20 contos, alguns muito curtos, reunidos no seu último livro Toda a verdade sobre a tia de Lúcia, que acaba de ser lançado pela 7 Letras.
Alguns deles, como os dois que abrem o volume de apenas 90 páginas, Invisibilidade e Chocolate amargo, estão com certeza entre os melhores que a autora já escreveu, oscilando entre a melancolia e a fantasia que liberta.
Tenho antipatia pessoal por minicontos em geral. Mas gosto de contos curtos, de alta concentração, de que Violência, contido em apenas uma página, é belíssimo exemplo. O conto-título por sua vez explicita bem a temática dominante neste e em outros livros. Outros contos ajudam a compor um mundo de fragmentação e carência, de amores frustrados ou fugitivos. Nele a personagem de muitos nomes busca o tempo todo encontrar, ou dar, um sentido ao absurdo da existência. “Todos acabamos descobrindo o que se costuma chamar de “o grande mistério da vida”. Mas é sempre tarde demais.” resume em Descoberta. No entanto, a arte, exercitada ou apenas referida, permeia todo esse pessimismo radical. É como se Sonia afirmasse que, por meio da atividade artística, incluindo-se aí a literatura, somos capazes de transcender a imanência que nos ata, somos capazes de nos justificar, e assim de algum modo obter a gratificação que redime todas as agruras e limitações inerentes ao curto percurso que toca a cada um neste planeta insignificante, mas que ainda assim guarda tudo o que amamos.

ELLA, PRESENTE DE JOÃO UBALDO



Ubaldo lembrou que ouvimos essa música ainda em Salvador. E me mandou por e-mail...

UM CONTO DE ELIAS FAJARDO

Tela de Neo Rauch


O encontro

Nem sei se estou morta ou viva, dormindo ou acordada, parece que vou pra um lugar encantado. Me sinto assim quando na cama com ele. Estou falando de um cara muito especial, o Carlos, que sabe tirar leite das pedras, se é que você me entende. Mas quando faço amor com ele penso em outros (e outras) e isso aumenta a excitação e a sensação de me sentir traindo, sei lá, e ao mesmo tempo preservando um terreno só meu, que ninguém pode alcançar. Toda vez que vou pra cama carrego tudo que já fiz e imaginei fazer nela. Em cada beijo, todos os beijos. E assim por diante, se é que você está me entendendo.

Onde eu estava com a cabeça quando fiz aquilo?, pergunta-se Rubem. Nem dá pra dizer como foi. Todos os começos a gente devia escrever num diário ou apenas no diário imaginário da fantasia. Não registro nada, por medo de que alguém descubra, e também por achar que nada do que possa registrar vai ser tão intenso (ou bem escrito) quanto o que vivi. Não sou nada, ou melhor, sou 39, 42 ou 25, dependendo da ocasião.

Profissionalmente, sou uma mulher meio realizada. Meio porque sempre que me empolgo, minha amiga Mara me diz: “Menos, Norma, menos.”
Dou aulas de português e literatura. Tem horas que acho isso o máximo: mostrar pra rapaziada o conto “O espelho”, de Machado de Assis, e dizer que ele “ se desenvolve em torno de uma teoria da alma que supõe um ceticismo radical frente à constituição imaginária e alienada do eu, suportada pelo vazio e reposta pelo comércio especular das aparências.”


A amizade pra mim é algo muito precioso, mais valorizado até do que o amor. Parece que quase todos os homossexuais pensam assim, mas será que sou mesmo um homossexual? Já fiz com mulher, homem, gente grande, coroa, criança, bichos. Sou como todo mundo é, só que não confessa. Nem admite. Eu mesmo não admito, se me disserem ou me cobrarem a minha vida pregressa, nego tudo que acabei de fazer indagorinha e que me deu muito prazer. Ou não.

Imagina, tou brincando. Você acha que uma mulher como eu, professora do segundo grau do município, enfrentando uma rapaziada que não quer nada com nada, vai falar difícil em sala de aula? Começo sempre do início: digo a um bando de mais de trinta moços e moças desinformados, mal nutridos, desinteressados, quem foi Machado de Assis, porque o que ele escreveu nos interessa e assim por diante. Tento ser como o elefante do Carlos Drummond de Andrade: toda manhã juntar os cacos e recomeçar.
Tudo bem, a profissão não é nada. O mais complicado é a vida amorosa, ainda mais agora que a minha melhor amiga me confessou...
péra aí... xii, tocou o telefone. Depois continuo.

Estou aqui tentando me entender comigo mesmo, não sei se isto é um diário, uma confissão ao gravador, ao computador: o que interessa é rasgar o véu da fantasia. E já que me rasguei todo, vou ser mais claro: o sexo não é só carnal, são sentimentos, idéias, desejos trocados e desencadeados. Tenho muitos amigos e um namorado, mas não sei o quê nem a quem quero, a quem entrego meus melhores pedaços. Estou só como uma pedra.

A janela deixa entrever uns telhados, a Igreja da Glória se espreguiça entre a neblina que cobre parte do morro. Vento frio e sol quente de inverno brincam de entrar e sair no apartamento de Norma. “Não sei se vou à praia ou se pego um cinema. Vou ligar pra Mara e dizer que não quero mais saber desta triangulação, deste ménage à trois mal resolvido, não sou mulher de deixar pra amanhã o que posso fazer hoje. Ou sou?”

Rubem chega à janela do seu apartamento no centro de Juiz de Fora a tempo de ver os últimos raios do sol se pondo atrás dos edifícios, uma revoada de pombos, freadas no asfalto. O carrilhão da igreja badala as seis da tarde.
Espanto, sombras,
ângulos agudos, crepúsculo.
Rubem garante a si mesmo que não provocou, apenas foi um participante. O namorado nos braços de outro, e com o seu consentimento. A gente sempre fantasia, imagina mil detalhes, mas quando acontece parece que nem foi real: mais uma cilada da imaginação desenfreada. Não era bem isso que ele estava pensando em curtir. Nem eu.

Mara entra na casa de Norma: uma lufada de vento, um pequeno furacão de cabelos ruivos e fala solta. Amigas do peito e de dividir tudo. Até o namorado, pensa Norma, desconsolada. Carlos até que gostou da brincadeira, mas ela, mesmo, não sei. Quanto mais moderna e contemporânea a gente se torna, mais conservadora por dentro. Quem diria que eu pudesse me chamar assim. Estou mexida, desarvorada, ora, isso não passa de um ataque de ciúmes bobo, adolescente.

“todos os temas
um tema:
o tempo”
escreve Rubem no seu lap-top, assim mesmo sem maiúsculas, uma tentativa de hai-kai.

Norma: “Você fica aí andando de um lado pro outro, porque não atende o telefone?”
Carlos: “Ué, mas o telefone não tocou”.
Norma: “Não tocou porque eu ainda não liguei, ora”
Estava tudo tão bom, nós dois no maior amor, escrevendo com pilot no banco do parque: “Norma e Carlos”, e agora é como se me tivessem tirado o tapete debaixo dos pés. Tenho de culpar alguém, talvez eu mesma, com todo meu liberalismo de butique, mania de achar que posso tudo. Não posso porra nenhuma! E dá uma vontade danada de implicar com o Carlos, criar caso por conta de pequenas coisas.

O mais difícil não é o que fazer, mas o que não fazer. Se temos uma relação boa, de confiança recíproca e intensa sexualmente, qual o problema se alguém se mete na nossa cama, de repente? As relações abertas, ainda que fugazes, iluminam a mesmice da vida. Mas não é tão simples. Ando cansado do sexo fortuito, todo mundo faz com todo mundo, quero alguém pra chamar de meu. Mas como, se, mesmo numa cidade conservadora como esta, ninguém é de ninguém?
As pessoas tremem de frio, enfiam as mãos nos bolsos do casaco, uma lufada de inverno percorre a rua Halfed. Bancos, loterias, lojas de móveis e eletrodomésticos, lojas de CD com ruído de duplas romântico-sertanejas. E um coração solitário que olha pela janela do quinto andar.

Vou dizer pra ela que não quero dividir meu homem. Carlos é meu, e ninguém tasca. Esta coisa sueca de partilhar namorado não combina com meu temperamento latino. Mas não quero ferir Mara, minha amiga, minha amada companheira.
Norma: Mara, toma mais uma cerveja, minha linda, depois descemos pra comprar mais.
Mara: Menos, amiga, menos. Assim a gente não consegue estudar pro concurso.

Na academia de ginástica, no meu primeiro dia! Putzgrila, eu tinha que fazer merda! Olhei demais prum coroa que não era nem essas coisas e ele me encarou feio: “Tás querendo o quê, meu! Pára de olhar pro meu pinto.” A ducha fria gelou o peito de Rubem.
Não preciso disso, tenho namorado, mulheres com que transo de vez em quando, pra que ficar nessa fissura? Não quero agir como bicha vagabunda, posso ser expulso da academia!
Eu queria deitar na cama e escolher uma palavra pra ficar repetindo, repetindo até que o som se descole do sentido e tudo pareça um outro universo, diferente desse onde só faço dar com os burros n’água.
Rastros de conversa na esquina.
Tique taque do relógio na noite.
O canto do canário ilumina a madrugada.
Carlos toma um valium e tenta dormir.

“Se é que você está me entendendo, eu não quero ser palmatória do mundo.”
“Mas Norma, o que é palmatória?” pergunta Mara, meio falsa, meio a sério.
“Palmatória é uma coisa que nas escolas de antigamente, as professoras usavam pra dar porrada nas mãos dos alunos!”, e Norma dá umas palmadas na bunda da amiga que morre de rir.

João chega em casa com a pulga atrás da orelha. Sente que o outro o olha de banda, mas não dá o braço a torcer. O bom cabrito não berra.
“Vamos ao cinema, Rubem?” Está passando um filme com o Leonardo de Caprio.”
Um Rubem de olhos lânguidos o enlaça apaixonadamente: “Se ele soubesse quanta doideira se esconde aqui nesta cabecinha...” E emenda: “Vamos sim, cara, tem uma sessão daqui a pouco.”

Norma com uma sensação de dor de corno, e ao mesmo tempo percebendo um certo encanto no que aconteceu. Os três estavam bebendo na Lapa e, aos poucos, foram se soltando. Lembrou-se do Peter O’Toole que dizia ser bonito dependendo do ângulo de luz. Carlos é assim também: um sujeito que fotografa bem, comprido, anguloso, esguio como bambu ao vento, com uma cara marcada de espinhas mal curadas. E Mara também estava especialmente bela, com um colar vagabundo de contas de madeira comprado no camelô, batom carmim nos lábios grossos, olhos cor de jabuticaba sem pintura. O que a gente leva da vida é a vida que a gente leva, pensa Norma, e não consegue mais parar de rir. Vamos esticar lá em casa, propôs Carlos, e os três vão andando tropegamente para o apartamento na rua Riachuelo, oitavo andar, uma única janela que se abre para os telhados vizinhos e um visual de final do século XIX, uma torneira pingando e a pia da cozinha cheia de louça suja.

João acorda tonto. Bebeu demais no bar Marraquech, não segurou as pontas de duas caipirinhas e ainda pediu uma terceira. Depois deu um bolo em Rubem, deixou o amigo esperando sem dar notícias e se enfurnou em casa, disposto a dormir, mas sem conseguir. Aos poucos vai relaxando, a relação com Rubem o incomoda. João ainda não desistiu de ser hetero e sonha com namoradas para dar uma satisfação a si mesmo, à família e à sociedade.
Melhor tentar dormir do que encarar a noite de Juiz de Fora, tão desanimada quanto um final de festa. Uma sensação boa vai invadindo João: imagina que, por dentro de suas têmporas, estão presos dois elefantes, um de cada lado da cabeça. Os elefantes vão empurrando a pele e os ossos com as trombas, e o crânio vai se distendendo; o cérebro vai sendo penetrado pela água limpa do regato que lhe irriga também as veias intumescidas e o couro cabeludo já um pouco sem cabelos. Imagina as mandíbulas presas ao resto da cabeça por dois parafusos que ele vai afrouxando, desenroscando, então o queixo cai, a garganta se solta, uma baba escorre pelo canto da boca.

Mara detesta que lhe acariciem as costas. Sente cócegas, irritação, sei lá. Mas adora que lhe passem a mão na frente. E por aí vai. Norma já nem sabe de quem é a mão que lhe percorre os seios. Os três juntos numa cama estreita pra tanto corpo, santíssima trindade da sacanagem e do tesão. Carlos vem por cima, mas não se importa de ficar por baixo. Norma prefere o meio, vira sanduíche entre a amiga e o namorado. Risos, beijos, chupões, pernas e braços entrelaçados entre um gole e outro de cerveja. Mulher fazendo papel de homem e homem de mulher, Carlos sendo penetrado pelos dedos das duas e Mara sendo enrabada pela amiga. Todos os gatos (e gatas) são pardos na imprecisa madrugada. Quem gozou, gozou, quem não gozou, gozasse. Bocas, sexos, coxas, suspiros. E um sono reparador.

João acorda lembrando de um episódio que preferia esquecer. Estavam ele, um amigo, uma garota, uma garrafa de cachaça e vários baseados num wolks, numa estrada vicinal. Conversa vai, conversa vem, mais um trago, mais um tapa, mais um aperto escondido. Carícias de homem se confundem com as de mulher, uma desconfiança percorre cada um dos participantes. A moça quer que lhe dêem logo o dinheiro que combinaram antes de avançar mais, o amigo quer João, mas acha que deseja a garota, e ele, João, quer apenas dar mais uma bicada na cachaça para ver se acha algum sentido num programa tão insensato. As sombras das árvores atravessam a estrada, são longos dedos negros que se movem, surgem e desaparecem. Uma coruja brilha seus olhos diante dos faróis, morcegos cruzam a luz emitida pelo carro, mais um aperto, risos nervosos, nenhum dos três parece se divertir com a situação, mas é preciso mostrar que estão a fim, ninguém quer desistir primeiro. João arrisca um beijo no amigo, que foge com a boca, finge nojo. A moça ri a bandeiras despregadas, desprende o fecho do sutiã e deixa sair os peitos meio murchos, que João acaricia. O amigo também quer ver mais de perto e tira as mãos do volante. O carro começa a balançar, o amigo não vê a curva, não faz a curva e o carro entra pasto a dentro, mergulha no rio. João, o único que sabe nadar, sobrevive e vai embora sem socorrer o amigo e a garota.

Mara, Carlos e Norma acordam com gosto de cabo de guarda chuva na boca. Quero ir-me embora desta cama, desta situação o mais rápido possível, se é que vocês estão me entendendo! exclama Norma, tentando vestir a saia. Carlos está feliz, sente-se dono de um harém, quer mais sexo, mais carícias, dormir abraçadinho. E Mara não quer nada, não sabe se ri ou chora. Nos metemos numa canoa furada, eu pelo menos estou me sentindo cheia de furos, de desacertos, não gostei nada, e não vou me fingir de moderninha dizendo que foi bom, diz Norma, olhando de cara a decepção refletida nos olhos dos dois parceiros. Um sol quente de manhã entra pela janela, a empregada da vizinha liga o rádio alto, na rua lá embaixo um alto-falante oferece pamonha quentinha. Agora não adianta moralizar, pondera Carlos, o que está feito está feito, o que não tem remédio remediado está. Mara acende um cigarro, não diz o que sente nem o que deixou de sentir. A fumaça envolve três cabeças descabeçadas em cima de uma cama desarrumada.

João desconfia que foi por causa do desastre de carro que ele aceitou, sem resistência, fazer sexo a três com Rubem e um desconhecido que eles pegaram na rodoviária. O cara, cabreiro, não queria ir, mas Rubem o convenceu com uma boa conversa e alguns reais a mais. E foram os três pro apartamento de Rubem com um certo entusiasmo inicial, mas que, depois da primeira cerveja, desandou. Mãos, pernas e bocas se tocam e se desencontram. Rubem tenta descontrair botando um cd de jazz mas não houve jeito. O sujeito sai porta afora feito cachorro que quebrou o pote, mergulha na neblina do inverno mineiro enquanto Rubem e João olham pra cara um do outro.

Não agüento mais esta história, vou passar uns dias no interior, resolve Norma. E pega um ônibus para Juiz de Fora, onde vai se hospedar na casa de uma prima. O ônibus corre pela BR e as cenas se misturam na cabeça de Norma. Nós três na cama foi ótimo, nunca tinha tido tanto prazer, meu namorado e minha amiga, os seres que mais amo entrando e saindo de mim. E porque não? Se eu não fosse tão culpada ia achar é bom, querer mais. O ônibus acelera. Norma e a paisagem fora e dentro de si mesma. As árvores, o rio, a montanha cheia de lanhos e água escorrendo depois da chuva. E ela, cheia de sentidos e sentimentos, perdida e achada, desencontrada, mas feliz. Liga pra Carlos pra dizer tudo isso, mas o celular dele está fora de área.

Rubem e João se encontram na rodoviária de Juiz de Fora. Vão esperar um amigo que vai chegar do Rio de Janeiro. Os dois andam ressabiados, mal se olham, poucas palavras e silêncios longos. Muita gente saindo do ônibus e eles não encontram o tal amigo. Norma tenta sair do ônibus, pra que pressa, meu Deus, eu vim descansar, desce a escada e a mala despenca de suas mãos e vai cair no pé de João, que disfarça a dor e dá um sorriso amigável pra morena:
“Não tem problema, moça, sua mala está em boas mãos”. João, Rubem e Norma saem conversando: nunca se viram antes, mas parecem velhos amigos. Rubem empurra a mala de rodinha de Norma e os três tomam um táxi para a rua Halfed.

POEMA DE FERNANDO DA ROCHA PERES


VISAGEM

Amo os objetos
os mais simples,
toscos e velhos,
inusitados sempre.
Uma calçadeira.
Um maçarico.
Uma cadeira de barbeiro, e tudo
de madeira ou ferro.
As coisas úteis
que o tempo estagnou
carregam lembranças.
Todos, na penumbra,
destilam uma poeira
interior e ensinam
que a vida permanece
no tateio do usado,
de uma natureza outra.
Os objetos nos espreitam
como se fossem corujas
dentro de casa.

A ESCRITA COMO NECESSIDADE DE VIDA

Entrevista de Sonia Coutinho a Lima Trindade



Sonia Coutinho nasceu em Itabuna-BA. Aos oito anos passou a viver em Salvador e, em 1968, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se tornou jornalista, tradutora e escritora. Traduziu cerca de cem livros. É uma das mais importantes escritoras brasileiras em atividade. Conquistou o Jabuti por duas vezes, o Status, para literatura erótica, e, pela Biblioteca Nacional, o Prêmio Clarice Lispector de contos. Participou de diversas antologias no Brasil e no exterior e teve quase toda a sua obra reeditada pela 7Letras.

Lima Trindade: Como se deu sua aproximação com a literatura, quais os primeiros livros que leu? Gostaria que falasse um pouco de sua formação como escritora. Você cresceu num ambiente de leitura e estímulo ao pensamento?

Sonia Coutinho: Meu pai era um intelectual. Formado em Direito, tornou-se político e foi eleito deputado estadual em três legislaturas. Escrevia poesias e traduziu poemas, por exemplo, de Baudelaire. Tínhamos muitos livros em casa e bons livros. Desde muito pequena eu adorava ler e pulei das histórias de fadas para os livros adultos do meu pai. Lembro de ter lido, ainda menina, os contos completos de Guy de Maupassant e um livro de contos de Katherine Mansfield, que amei: “Felicidade”. Meu irmão também é um intelectual, embora não da área de literatura e sim de ciência política. Meus primeiros contos foram as redações de português, na escola. Os professores me encorajavam muito. Mas, fora desse belo quadro que acabei de traçar, não posso dizer que tenha recebido estímulo para me tornar uma escritora. Sofri uma grande pressão, por parte da família, para não abandonar os modelos estabelecidos. Houve muitos e dolorosos conflitos. Mesmo assim, continuei e continuo escrevendo. O jornalismo e a tradução, minhas duas atividades profissionais, acho que foram muito importantes em minha formação de escritora. Também, com certeza, as viagens que tive a oportunidade de fazer e o grande número de pessoas do meio literário e artístico com as quais entrei em contato, nesse percurso. O lado pior para a literatura, em tudo isso, é que nunca tive o tempo necessário e ainda não tenho, para me dedicar detidamente a ela ou a outras atividades artísticas que me dão prazer. Mesmo a esta altura, preciso continuar traduzindo para sobreviver.

LT: A mudança para o Rio de Janeiro, em função do contato com editores e escritores, favoreceu sua carreira literária, deu-lhe maior visibilidade? Considera que possa ter causado também algum tipo de perda no plano artístico?

SC: Não vim para o Rio apenas em função desses contatos que você menciona. Na Salvador dos anos 60, eu vivia uma situação pessoal que sentia como sufocante e limitadora, em vários planos. Vir para o Rio e fazer jornalismo na grande imprensa foi uma experiência muito enriquecedora para mim. Alarguei minhas fronteiras humanas. Claro que o Rio também foi duro, sob vários aspectos. Mas acho que não havia outra saída e que o saldo foi positivo. Hoje, tudo mudou e não sei se uma atitude como a que tomei seria ainda necessária. Talvez já seja possível ficar aí (Salvador) numa boa, sem diferença nenhuma. Com relação à literatura, acho que, se minha vida se alargou, o mesmo deve ter acontecido com meus escritos. E estando no Rio, mais perto da imprensa dita “nacional”, claro que tive mais visibilidade.

LT: Enxerga diferenças no lugar que mulher e homem ocupam dentro da literatura brasileira? A crítica especializada guarda algum tipo de preconceito, velado ou explícito?

SC: Não creio que, quando um resenhista escreve sobre um livro de autor que ele não conhece, faça alguma diferença se é homem ou mulher. Mas ainda vejo, sim, uma diferença na questão do reconhecimento, da validação final do trabalho. É mais fácil para um homem ser reconhecido do que para uma mulher. Você constata isso comparando, por exemplo, a diferença de número entre escritores dos dois sexos que ocupam cadeiras na Academia Brasileira de Letras. As mulheres entraram, mas são comparativamente poucas. Em eventos literários importantes, sempre são convidados muito mais autores homens. O número de escritores homens que aparecem na mídia é bem maior, embora muitas mulheres estejam escrevendo e publicando. E vai por aí. Poucas escritoras conseguem entrar no panteão dos Grandes, no Brasil. Ou em toda parte...

Kátia Borges: A Bahia aparece em seu romance “Atire em Sofia” como um lugar sombrio, uma Salvador sem nome, mas com as características da cidade. Por que essa espécie de sublimação?

SC: Embora eu guarde uma grande nostalgia de Salvador, a ponto de nunca ter me afastado inteiramente da cidade, foi aí que tive as experiências mais duras da minha vida. Fiz mais de vinte anos de análise para tentar descartar esses traumas e não sei se consegui inteiramente. A cidade que aparece no “Atire em Sofia” tem mais a ver com essas experiências pessoais profundas do que com qualquer cidade real, embora apresente características de Salvador. Talvez por isso eu não dê nome a esse lugar sombrio, cheio de aparições e assombrações e onde acontece um crime...

LT: Sua produção de livros de contos e romances é muito equilibrada. Tem alguma definição pessoal para o conto? O que busca hoje num romance, seja seu ou de outro escritor?

SC: No momento, estou sem nenhum projeto de escrever um romance. Há muito tempo escrevo apenas contos e não com a frequência que desejaria. Talvez porque, de dez anos para cá, tenha enfrentado novos problemas que interferiram com minha criação literária. Está difícil realizar projetos que exijam mais planejamento, mais horas de computador, como é o caso de um romance. Quanto à segunda parte da sua pergunta, não tenho uma “definição” para o conto. Poderia falar em tendências que tenho observado. Nos últimos anos, apareceram cada vez mais os contos curtos. E “contar uma história”, no sentido convencional, saiu de cena por completo, a não ser como um jogo. Vejo também, no conto hoje, uma descrença total no “realismo”, digamos assim. O autor fala diretamente com o leitor, os personagens tiram suas máscaras. Num romance de outro autor, não busco nada específico, a não ser, talvez, que ele alargue, de alguma forma, minha percepção da vida... Quanto aos meus romances, nunca tive expectativa prévia. Nasceram ao sabor do que ocupava minha cabeça.



Mayrant Gallo: Qual o seu livro que você mais aprecia? Qual o seu conto que você considera perfeito? E por quê?

SC: Escrever literatura sempre foi para mim uma atividade penosa, embora também “salvadora”. Escrevo por uma forte necessidade interior, mas não diria que “por prazer”. Não “lambo a cria”, como se diz. Assim, fica complicado dizer que livro meu mais aprecio. E não considero “perfeito” nenhum conto meu. Essa idéia de perfeição nem me passa pela cabeça. O que quero é botar para fora algo que está dentro de mim, pedindo para sair – e completar o processo, o que nem sempre acontece. Muita coisa fica pela metade, inacabada.

MG: Como monta seus personagens? De modelos da vida real ou de modelos imaginados?

SC: Minha literatura sempre esteve bem próxima da vida, nunca foi uma coisa “de gabinete”. Parto de uma experiência vivida, de um episódio de que participei, ou de uma pessoa de verdade que, de alguma maneira, me impressionou. Mas tudo é transformado e, no final, ficam apenas fiapos do que vi ou vivi. O problema é que as pessoas encontram esses indícios e acham que tive, integralmente, experiências que nunca aconteceram.

MG: Você escreveu “Rainhas do crime”, o que nos leva a crer que é uma leitora do gênero policial. Como explica o fato de que, no Brasil, o gênero policial que, pelo mundo, gerou grandes livros, como “O longo adeus”, ou “Santuário”, seja ainda considerado subliteratura?

SC: Não vejo pessoas considerando o policial subliteratura, pelo menos no meio em que transito. O que se pensa do policial é que se trata de um gênero específico. Quanto a mim, embora simpatize com o gênero, nunca fui, na verdade, grande leitora de policiais, salvo durante os três anos em que preparei uma pequena dissertação de mestrado que foi publicada com o título “Rainhas do crime”. O que me levou ao policial foi mais a questão da autoria feminina. Não havia escritoras policiais entre nós, quando escrevi a dissertação, salvo Maria Alice Barroso, autora de “Quem matou Pacífico?”, na verdade mais um romance regionalista. Nesse período, anos 80-90, começou a surgir, nos Estados Unidos, o chamado “romance policial feminista”, criado, entre outras autoras, por Sara Paretski, de quem traduzi três romances. Paretski põe em cena uma detetive mulher, Warshawski, bem diferente da Miss Marple da Agatha Christie. Warshawski traz a imagem da mulher sozinha na metrópole, da mulher que trabalha e se sustenta, uma figura que começava a se impor no Brasil. Isso me interessou e então propus, na Escola de Comunicação da UFRJ, fazer minha dissertação sobre autoria feminina no policial. Por outro lado, naqueles anos 90, havia um grande interesse pelo policial entre nós. O autor mais cultuado era Rubem Fonseca, que justamente aboliu a fronteira entre literatura “culta” e “de massa”, escrevendo romances “eruditos” com fortes elementos do policial. Depois da pesquisa para o “Rainhas do crime”, escrevi um romance que é quase um policial, “Os seios de Pandora”. Criei uma repórter que funciona como detetive, Dora Diamante. Em seguida, por uma série de fatores, eu me desinteressei do policial e hoje não leio quase nenhum. Mas respeito o gênero.

KB: O que acha de alguns críticos, que afirmam que o romance acabou?

SC: Confesso que não gosto muito de ler crítica literária. Sempre senti que aprendo muito mais lendo o que os outros escritores escrevem. Mas gosto de ler ensaios sobre arte contemporânea. E lembro que um estudioso de arte, Arthur Danto, já falou, há alguns anos, no fim da arte... Mas a arte continua a ser feita e os romances continuam a aparecer aos montões nas livrarias.

KB: Como é sua relação com a literatura feita hoje em Salvador? Sente-se em “obrigação” com a produção de sua terra, a exemplo de vários autores que se tornam espécie de embaixadores, ou esta é uma visão provinciana e que a incomoda?

SC: Não acho que é visão provinciana, mas não tenho poder para me tornar “embaixadora” de alguma coisa. O máximo que consigo, enfrentando muitas dificuldades, é tocar adiante minhas coisas. Sinto, no entanto, uma simpatia natural pela literatura feita na Bahia. Tenho sempre vontade de me tornar amiga dos escritores baianos. Afinal, continuo sendo uma escritora baiana.

KB: Você atua também como tradutora. Quais os maiores desafios que enfrentou?

SC: Sou tradutora profissional, traduzo porque preciso ganhar dinheiro. Então, vou cumprindo as tarefas que as editoras me passam, os desafios têm sempre de ser vencidos. Não posso pensar em traduzir nesses termos de “desafio”. Mas diria que não existe tradução fácil. Todas desafiam, têm problemas, exigem pesquisas, consultas a dicionários, à internet.

LT: O surgimento da net, em sua opinião, estimula a formação de novos leitores? A experiência como blogueira tem sido positiva? Contribui para a aproximação entre escritor e leitor?

SC: Sim, acho que a net estimula a formação de novos leitores e, mais ainda, o surgimento de novos escritores. Cada um pode ter seu blog e escrever – e muita gente está fazendo isso. Faço o Sidarta há quase dez anos, com interrupções, e gosto imensamente. Entro em contato com grande número de pessoas interessadas no que ponho em meu jornal eletrônico. E acredito que muita gente procurou meus livros depois de ler meu blog.

LT: A conquista de dois prêmios Jabuti ajudou a consolidar seu nome? Acha que sua obra obteve o reconhecimento que merecia?


SC: Ter ganho dois Jabutis com certeza me ajudou a me firmar como escritora, mas o grande público toma pouco conhecimento disso. Também ajudou, embora fosse pouco divulgado, ganhar o Prêmio Clarice Lispector de Conto da Biblioteca Nacional, com “Ovelha negra e amiga loura,” de 2006. Quanto a reconhecimento, pergunto: o que é isso? Se me responderem que ser reconhecido é ganhar bastante dinheiro, obter larga simpatia e muitas amizades, direi que não tenho o reconhecimento que desejava. Queria muito mais, não importa se mereço ou não...

LT: Existe algum segredo para manter vivo o interesse pela escrita, após tantos livros publicados?

SC: Literatura para mim é vida. Manter aceso o interesse pela escrita corresponde a manter aceso o interesse pela vida. E não acho que eu tenha tantos livros publicados, não. Poderia ter escrito muito mais e muito melhor, se tivesse conseguido mais tempo livre e mais apoio.


Esta entrevista foi postada originalmente na revista eletrônica Verbo 21, de Lima Trindade, e teve a participação de outros intelectuais baianos, como entrevistadores.